Na sequência da tentativa de reunir informação de origens diversas no blog rebordanense, parti à exploração da obra do Abade de Baçal, de nome Francisco Manuel Alves, essa figura quase mítica que concentrava em si conhecimento à moda renascentista: homem completo nas várias artes e saberes. A obra deste abade encontra-se reunida nas “Memórias Arqueológico-históricas do distrito de Bragança” e organizada em 12 tomos. Este texto centra-se somente sobre o primeiro tomo e tenta reunir de forma significativa as informações dispersas neste mesmo tomo.
Rebordãos apresentava-se, no início do séc. XIX, como um território “encravado” e dependente de Bragança, enquanto outros circundantes se emancipavam face à cidade e acabavam por pertencer a outros distritos.
Em 1808, durante o domínio francês, o abade de Rebordãos, Francisco Xavier Gomes de Sepúlveda, publicou uma “Memória abreviada e verídica dos importantes serviços que fez à nação o ex.mo snr. Manoel Jorge Gomes de Sepúlveda tenente-general e governador das armas da província de Trás-os-Montes, na feliz origem, e progresso da Revolução, que salvou Portugal”, por sinal seu irmão e pai de Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, nome que ficou conhecido na nossa história política dos anos de 1820 a 1823. Este general alegava que, à semelhança do Francisco da Silveira Pinto da Fonseca que entrara em Vila Real e libertara o povo dos franceses, ele também o havia feito em terras de Bragança. No entanto, foi o abade de Carrazedo que recebeu pelo correio informações relativas à prisão dos franceses no Porto, logo comunicando à cidade tal facto: “levando vivas ao Príncipe Regente. O abade de Carrazedo e António Vicente Teixeira Sampaio anteciparam-se a Sepúlveda [general] em levantar o grito da insurreição” (Alves, 2000: 140-141), já que este se encontrava nesta altura numa missa na Igreja de S. Vicente! Contudo, tal como afirma o Abade de Baçal, sem o seu apoio, não teria sido possível a confirmação da revolta bragançana – ele foi o chefe da aclamação do governo legítimo em Trás-os-Montes.
Algum do encanto e atractividade que o abade de Rebordãos detém é o facto de os vários textos que deixou serem provas do seu liberalismo fogoso, especialmente porque durante o período do governo constitucional foram cometidas injustiças, das quais o próprio abade (e outros clérigos) teve de fugir, “deixando a trezena de Santo António e a novena do Coração de Jesus” (ibidem: 181). Tal foi a dimensão destes “horrores, crueldades e impiedades” (ibidem: 180) que alguns membros do clero trasmontano pegaram em armas contra o Governo constitucional. Desencadeou-se a revolta da província e quando as tropas constitucionais chegaram a Trás-os-Montes traziam um ofício que identificava o clero como o promotor da revolução: “entre os meios moraes da revolução, devia entrar o demasiado afêrro do estupido clero trasmontano ás maximas ultramontanas” (idem). Esta situação originou uma perseguição ao clero: “Vigario capitular, deão e conegos da cathedral de Bragança, parochos e ecclesiasticos os mais dignos e missionarios do exemplar Seminario de Vinhais, tão util á provincia e ao reino, tudo gemeu e nada escapou. Uns desterrados para terras remotas, outros presos em cadeias publicas, ainda mesmo onde havia aljube, como aconteceu em Bragança com o abbade de Alfaião e outros mais, só porque a inimizade e a intriga saciavam em denuncias a sua vingança.” (idem).
Resta assim saber quem era este personagem hiperliberal que marcou a região de Bragança e especificamente Rebordãos. Francisco Xavier Gomes de Sepúlveda nasceu em Logroño, Espanha, presumivelmente em 1761 e morreu em Bragança, em 1851, com quase 90 anos. Foi nomeado abade de Rebordãos em 1790 e chegou mesmo a ser reitor do Seminário de Bragança entre 1817 e 1818. No entanto, este abade desde cedo demonstrou um descontentamento e uma discordância quase militantes face à autoridade religiosa, daí que, em 1803, tenha publicado a “Dissertação Histórico-Crítica sobre a Comunhão Frequente e Quotidiana”, na qual se insurge contra a comunhão diária, razão pela qual escreveu as suas “Memórias Históricas” contra o bispo de Bragança, António Cabral da Câmara, culminando na crise de 1834 (que será alvo de novos capítulos). Para além das memórias, escreveu igualmente “Apologias do Abade de Rebordãos” (contra as invectivas e calúnias do Abade de Medrões), “Exame Crítico” e “Apêndice ao Exame Crítico”. [baseado na Wikipedia e no “Diccionário bibliográfico português:
http://www.archive.org/stream/estudos00soargoog/estudos00soargoog_djvu.txt]
Entre outras informações, diz-se que Bragança era sede de um Auditório Eclesiástico, único da diocese, com vigário, promotor, dois escrivães, meirinho, aljubeiro e depositário das condenações. À jurisdição do Auditório pertenciam as vilas de Paçó de Vinhais, Nozedo, Ervedosa, Gostei, Rebordãos, Rebordainhos, Vila Franca, Vale de Nogueira, Failde e Carocedo com seus termos. As povoações que compunham o Auditório estavam agrupadas em secções determinadas pela orografia1 e hidrografia regional, chamadas ramos (ibidem: 361). Na altura das Memórias do Abade de Baçal, a diocese compreendia 17 distritos eclesiásticos, entre os quais Rebordãos era arciprestado com 19 freguesias, surpreendentemente maior número os arciprestados2 de Miranda do Douro, Vimioso e Vinhais. Paralelamente, dá o nosso Abade informações extremamente completas sobre as côngruas3 arbitradas aos cónegos na diocese de Bragança no período entre 1864-1865: na freguesia de Mós de Rebordãos, orago4 de S. Nicolau, contavam-se 110 fogos e amealhavam 176$430 de lotação (no pé de altar e demais rendimentos), enquanto na freguesia de Rebordãos, orago de N. S. de Assunção, havia 157 fogos com 293$485 de lotação (ibidem: 397).
Entre os muitos pormenores peculiares destas obras de Abade de Baçal, há referências às delimitações territoriais entre povoações Um destes exemplos, é a deliciosa delimitação de Cabanellas: “(…) Cabeço das Lastras aonde esta um marco ao pé do Pennedo do Lombo das Lastras e d’ahi pela rodeira velha ao Cabecinho das Masmorras que esta entre as estradas que vão de Bragança para Rebordãos e d’ahi ao Lombo do Espinho aonde esta um marco entre Nogueira e Rebordãos e Cabanellas e d’ahi ao pizão que esta por baixo da estrada e dos lameiros de Rebordãos abaixo dos quaes esta o marco em uma touça aonde chamam Escaramanchão e d’ahi Ribeiro abaixo até o Poço da Pia onde commeçou esta demarcação acima de muitas terras, lameiros, prados, soutos, montes e outras mais arvores e humas casas sobradadas e outras terreas e de uma capella de S. Miguel, tera a demarcação em redondo duas léguas” (ibidem: 371).
1 tradição cristã paroquial e dever moral e religioso do crente contribuir financeiramente para a honesta e digna sustentação do seu pároco ou simplesmente a pensão dos párocos.
2 divisão administrativa em que um decano entre os presbíteros de um arciprestado é responsável pela correcta execução dos deveres eclesiásticos e pelo estilo de vida daqueles que estão sob sua autoridade
3 descrição do relevo de uma região
4 patrono ou padroeiro, santo que a quem é dedicada uma localidade ou povoação